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PLATAFORMAS EDUCACIONAIS E PROCESSOS DE CONHECIMENTO
PLATAFORMAS EDUCACIONAIS E PROCESSOS DE CONHECIMENTO
Ao longo da busca por uma educação linguística abrangente, plural e equânime, muitos professores vêm se esforçando para fortalecer um processo pedagógico que considere o aprendiz em seu(s) contexto(s) e sua(s) singularidade(s). A necessidade de propor um modelo de educação diferente dos até então assumidos é urgente, e pauta-se na velocidade com que atualmente as mudanças vêm acontecendo na própria sociedade, cada vez mais múltipla e culturalmente heterogênea.
Para os envolvidos no ensino de línguas, essa multiplicidade é ainda mais significativa, pois constrói o próprio cerne da matéria-prima que constitui a sociedade, aqui entendido como o texto (nas mais diversas possibilidades de materialização) e os processos envolvidos na construção de seus significados.
A pedagogia dos multiletramentos tem proposto, nas últimas décadas, reflex ões bastante interessantes nesse sentido, em especial no que diz respeito à multimodalidade e à construção de ressignificações capazes de promover o que se convencionou considerar "expansão interpretativa" das mais diversas manifestações textuais. É a partir dessas reflexões que será analisada uma das propostas de produção textual realizadas na plataforma educacional Redação Paraná, em 2024. Essa ferramenta é apresentada no site institucional do estado da seguinte forma:
"Considerando a vivência em um mundo pautado na comunicação escrita, a prática da produção textual impacta diretamente os resultados do Componente Curricular de Língua Portuguesa além de outras áreas do conhecimento, bem como é fundamental para o exercício da cidadania e para a inserção no mercado de trabalho.
Diante dessas necessidades, foi criada a plataforma Redação Paraná com o objetivo de apoiar os estudantes da Rede no desenvolvimento da escrita por meio de redações de gêneros textuais diversos e temáticas atuais e, assim, promover o letramento digital.
A plataforma oferece aos estudantes oportunidades de praticar a digitação necessária para o mundo do trabalho e o feedback do professor, o que permite um aprendizado contínuo. Já para os professores, a plataforma oferece um banco de propostas completas com textos de apoio e alinhadas ao Currículo da Rede para cada ano e série escolar. Além disso, traz rubricas de cada gênero textual.
(Disponível em: <https://professor.escoladigital.pr.gov.br/redacao_parana>. Acesso em 14 out. 2024.)
Convém destacar que já na apresentação da plataforma reitera-se a importância da "inserção no mercado de trabalho", bem como "oportunidades de praticar a digitação necessária para o mundo do trabalho", evidenciando uma intenção notadamente mercadológica e pautada no capitalismo. Para essa postagem, o foco, no entanto, será a forma como pedagogicamente se orienta o aluno a produzir seu texto nas aulas de Redação e Leitura (disciplina que conta com duas aulas semanais no ensino fundamental do Paraná, sendo uma em sala de aula e outra no laboratório de informática), buscando aproximações e contrastes com os pressupostos de Cope e Kalantzis (2023, 2024).
A guisa de exemplo, tomemos a proposta feita para o 6º ano, segundo trimestre, do gênero textual Causo. A abordagem é feita de maneira bastante superficial nos slides disponibilizados para o professor, mas destacaremos aqui a forma como o gênero é introduzido e como são apresentadas suas características.
Inicialmente é apresentada uma seção intitulada "Começo de conversa", que propõe uma antecipação a respeito do gênero ou do tema a ser abordado. Nesse caso, foi o gênero, a partir das perguntas a seguir, que devem ser feitas na oralidade.
A intenção, nesse caso, fracassou nas turmas de 6º ano em que foi aplicada. Em duas turmas a resposta unânime para Quais pessoas você conhece que costumam contar causos? foi "ninguém". Nessas turmas, a resposta para a segunda pergunta Qual foi o causo que você mais gostou quando ouviu? foi "nenhum". Seguida de complementos como "nunca ouvi um causo" ou "o que mesmo que é um causo?". Na terceira turma, essas perguntas foram substituídas, sem o uso de slides, por "Algum de vocês já ouviu um causo? Sabem o que é?" e, na sequência "Vou contar um causo pra vocês e se alguém lembrar de outro pode contar pra turma, que tal?".
Narrei, de memória, o causo "Aquele animal estranho" de Mário Quintana, que era o causo proposto nos slides do RCO (https://docs.google.com/presentation/d/1mR100dX76I2xuS7w9N9NYLw1xE53FKB50T2bkkTiITw/edit#slide=id.g2d9e23e7450_0_0), mudando o nome das cidades citadas pelo autor para outras, mais próximas da vivência do aluno (Colombo e Almirante Tamandaré), e mantendo a ideia de que "A história foi assim como já lhes conto, metade pelo que ouvi dizer, metade pelo que inventei, e a outra metade que sucedeu às deveras. Viram?" (2º parágrafo).
Um dos alunos, após a contação do causo pela professora, lembrou-se do famoso Sopa de Pedras, contado para ele pela madrinha. Outro lembrou que um familiar contou uma história em que o protagonista precisa atravessar um cemitério, e como a pessoa que morava ao lado do cemitério tinha pendurado lençóis no varal e estava ventando, morreu do coração ao ver o "fantasma". Alguns alunos disseram que já tinham ouvido histórias parecidas, mas não se lembravam no momento. Propus, então, que pesquisassem junto a algum familiar ou conhecido um causo e trouxesse anotado para a próxima semana, o registro poderia ser feito por escrito da forma que o aluno considerasse mais adequada, pois ele contaria para os colegas.
Embora a proposta no RCO fosse de registro da revisão de características da narrativa (situação inicial, conflito e desfecho), considerei mais procedente, nesse momento, manter o foco no que é próprio do causo e registrar apenas algumas das informações do slide a seguir, em forma de tópicos.
Para o dia da apresentação, a turma foi organizada em círculo, na própria sala de aula por não haver espaço externo disponível na escola. Simulamos uma Roda de causo, e a professora anotou o nome do aluno e o título do causo. Como alguns não tinham título, inventamos na hora, coletivamente. Percebi que foi interessante para a turma pelos constantes pedidos de "vamos fazer de novo?".
Obviamente, as outras duas turmas de sexto ano foram organizadas para fazer o mesmo percurso de aprendizado, com resultados bastante semelhantes. Isso foi necessário, até porque a professora – no caso, eu – seria massacrada se fizesse apenas em uma turma. Observei, no entanto, que a turma que não passou pelo percurso proposto no RCO foi a que mais se envolveu.
Foi necessário, porém, registrar o causo na Plataforma Redação Paraná, obrigatoriedade imposta pela SEED, sob o seguinte comando de produção:
O comando foi considerado inadequado no contexto do processo desenvolvido mas, ainda assim foi apresentado aos alunos sob a orientação de que poderiam registrar o causo pesquisado e já apresentado na oralidade, se preferissem, que foi a opção da maioria.
Chegamos ao ponto crucial da sequência didática aplicada: a rubrica de correção apresentada na plataforma.
Buscando ser mais breve possível, vamos nos ater ao critério da nota da plataforma. Dos 100 pontos totais que o aluno pode atingir, 40 são atribuídos pela própria plataforma, segundo critérios de ortografia, semântica, sintaxe e outros.
Nesse texto, a plataforma julgou que o aluno cometeu muitas inadequações de repetição de palavras e de uso do "pra" no lugar de "para". As repetições, em textos próprios da oralidade, podem servir para atribuir ritmo à narrativa e o uso do "pra" justifica-se de forma totalmente adequada considerando ser o texto do gênero causo.
Em outros textos, os alunos usaram recursos onomatopeicos como BUM, PLUFT, TATATATA, também considerados erros de ortografia pela plataforma. Esse aspecto é relevante pois no quesito ADEQUAÇÃO AO GÊNERO, a nota deve ser atribuída segundo o critério do uso de recursos linguísticos (vocabulário, figuras de linguagem, entre outros), para a construção do tom visado, além de articuladores textuais apropriados ao gênero causo. Tarefa difícil, não apenas para quem tem 12 anos, conciliar adequação ortográfica e articuladores apropriados ao texto em gêneros dessa natureza.
Não vamos abordar a totalidade da rubrica, mas ela pode ser encontrada em <https://professor.escoladigital.pr.gov.br/redacao_parana>.
Apresentada essa sequência didática em suas versões "como deveria ser" e "como realmente foi", buscamos em Cope e Kalantzis (2024) argumentos para compreender a pedagogia de educação linguística subjacente ao uso da plataforma, bem como possíveis alternativas para o desenvolvimento de ações epistêmicas que considerem, de fato, os processos de conhecimento envolvidos na aprendizagem multi (diversidade do mundo da vida e forma de significado).
Para os autores, esses processos de conhecimento devem envolver, constantemente
"vivenciar (imersão nas realidades do mundo); conceituar (teorizar o mundo em termos disciplinares); analisar (investigar criticamente os propósitos e os interesses humanos que fundamentam o conhecimento); e aplicar (representar o significado de forma apropriada ou criativa em contextos reais). Essas ações frequentemente exigem que os alunos vão muito além do domínio cognitivo e entrem nos domínios socioemocionais e corporais da aprendizagem. Elas também implicam o uso eficaz da mídia - uma atividade material e incorporada, tanto quanto mental. Os multiletramentos abrangem todos os domínios da aprendizagem contemporânea, usando mídias antigas e novas de representação do conhecimento em todas as áreas temáticas e em todos os níveis de aprendizagem." (COPE e KALANTZIS, 2024, tradução livre)
Entendemos aqui que a vivência deve considerar a diversidade e o contexto em que se está inserido. Não é comum, no contexto atual de crianças de 11-12 anos, moradoras de um grande centro urbano como Curitiba, a vivência de contação de causos. Foi necessário apresentar exemplos e solicitar uma pesquisa para que eles vivenciassem efetivamente essa experiência, que se mostrou bastante enriquecedora. Um dos alunos chamou a atenção por estar de viagem marcada para o interior visitar o pai e aproveitou para fazer a pesquisa em um sítio, de propriedade da mãe de sua madrasta. Segundo ele, foram horas de contação de causos regadas a café e cuca de farofa, na cozinha da "vodrasta".
Sobre a conceituação e a análise, compreendemos que também podem ser múltiplas e diversas e, quando realizadas de modo colaborativo e compartilhado, contribuem para ampliar os domínios sociemocionais e corporais da aprendizagem.
Em relação à aplicação, é impossível não ter ressalvas acerca da proposta de registro do causo na plataforma, principalmente se considerarmos a rubrica de correção. Parece haver um descompasso nítido entre o comando de produção e os critérios avaliativos. É necessário, no entanto, ir além. Cope e Kalantzis apontam, em Towards Education Justice: the multiliteracies project revisited (2024), que na atualidade para entender "o por que" dos Multiletramentos é necessário se concentrar em dois desafios que definem a educação: a diversidade de alunos e a mídia digital. Dessa forma, o uso de plataformas é muito importante nos contextos atuais, porém o exemplo aqui citado evidencia que certos conhecimentos poderiam ser aplicados com uso de outras mídias (podcasts, tiktok) mais adequadas para a produção de um causo.
KALANTZIS, Maria; COPE, Conta. Multiletramentos: vida de uma ideia. O Jornal Internacional de Letramentos. Volume 30, Edição 2, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.18848/2327-0136/CGP/v30i02/17-89. Acesso em 15 out. 2024.
KALANTZIS, Maria; COPE, Conta. Multiletramentos: uma breve atualização. O Jornal Internacional de Letramentos. Volume 30, Edição 2, 2023. Disponível em: https://doi.org/10.18848/2327-0136/CGP/v30i02/1-15. Acesso em 15 out. 2024.
Aleksandra, com sua postagem, pude aprender mais sobre a plataforma Redação Paraná. Sua intervenção em relação à proposta inicial foi essencial, porque dá maneira como a atividade é apresentada na plataforma, imagina-se que os alunos já tenham conhecimento sobre o que é um causo, sem construir com eles a compreensão acerca desse gênero. A maneira como você trabalhou com os causos envolveu os alunos, e até seus familiares, aproximando o gênero do mundo da vida dos alunos e agregando relevância à experiência com o gênero 'causo'.
Gostei da maneira como você refletiu criticamente sobre a atividade por meio dos processos de conhecimentos. E, para além dos processos de conhecimentos, quais outras ideias dos multiletramentos podem contribuir para suas reflexões acerca da plataforma Redação Paraná?
Olá, Alexsandra!
É muito interessante você trazer essas reflexões, pois elucida que não é apenas o uso dos recursos que fomentam uma pedagogia dos multiletramentos. Ademais, a plataformização fortalece um ensino homogêneo e distante das realidades existentes.
Parabéns pela pesquisa e pelas reflexões!