Língua Global, Identidades e Saberes: Novas Tecnologias nas Zonas de Contato’s Updates
Escreve direito, menino!
"Direita vooooou ver!" foi dito ao recruta.
"Não é com a esquerda. É com a direita que se escreve!"
Eu fico imaginando quantas crianças foram traumatizadas por serem canhotas e serem reprimidas, punidas por não conseguirem escrever com a mão direita. A primeira pressão já vem em casa, com as primeiras refeições, quando o talher deve ser usado; depois dos coleguinhas, na hora de brincar de escolinha, quando chega na hora de estudar em uma escola de verdade então, aí é que são elas: é o real momento de desenvolver a escrita.
Minha mãe, meu filho e eu somos destros. Meu pai, minha filha e minha irmã não. Sorte da minha irmã que minha mãe percebeu cedo e a ajudou,mas a vida lá fora cobra.
Minha analogia com qual mão se escreve é justamente essa: cada pessoa escreve de uma forma diferente, cada um tem a sua "assinatura" ao fazer seus registros: em linhas tortas, com régua, mão livre. Cada um tem o seu jeito de pegar na caneta e posicionar o papel para escrever. Já vi alunos com o caderno de cabeça-para-baixo e retorcendo a mão e escrever com uma caligrafia impecável e o inverso também é verdadeiro.
Letra de forma, letra cursiva, grande, pequena, garranchos, computadorizadas e estilizadas. O ser humano consegue adquirir sua maneira de escrever e se expressar. Há até os que se expressam com desenhos (rupestre, hieróglifo por exemplo) e há quem escreva com a boca ou pé !! (por ausência total/ parcial ou encurtamento de um membro).
A magia toda está em que, à sua maneira, a comunicação acontece, o aprendizado acontece, ainda que com os erros da norma padrão do idioma.
Escrever com a mão esquerda não é sinônimo de que está errado ou que não aprendeu. E confesso que me encanto quando vejo tanta diversidade na forma dessa produção textual ser gerada. Observar o posicionamento da caneta, do papel e ver "nascer" as palavras é um dos "partos" que me fascinam.
Escrever é um ato de necessidade do ser humano depois da oralidade. Registar, documentar, propagar, eternizar, comunicar! É um ato tão essencial que é por meio da escrita que algumas pessoas vão ao cartório, seja para patentear uma letra de música ou uma fórmula secreta, para reconhecer firma e lavrar documentos diversos, registrar eventos como nascimento, matrimônio, óbito.
Falando em nascimento, convido você a observar um livro ata com as variantes dos nomes. Comece pelo diário de classe se você for um(a) professor(a). Um único nome com grafias diferentes. As letras dançam e, por vezes, embaralham nossas mentes e línguas com tamanha criatividade.
Tudo na tentativa de ser único. Patenteado. É junção de nome de pai e mãe ou dos avós, é um nome de artista estrangeiro com a adaptação "made in Brazil".
As letras simplesmente escorrem e nos mostram que são mutantes.
Olá, Sandra! Senti-me contemplada lendo esse post pois sou canhota! E de fato, as violências simbólicas resistências que passamos por não conseguir atender a padrões, mesmo que seja uma coisa tão boba como a que se usa para escrever. Quando eu era menor, tinha uma tia muito tradicional que insistia para que eu escrevesse com a mão esquerda, trocava meus talheres e chamava atenção da minha mãe como se fosse isso um problema. Desenho era meu escape e pude praticar melhor do que escrita. Comecei a desenhar melhor do que escrevia direito, eu era obrigada a fazer cadernos inteiros de caligrafia e nada melhorava. Porém com o tempo meus familiares viram como eu era habilidosa com mão esquerda mesmo que no desenho, o que para minha mãe pareceu desbancar toda e qualquer tipo de repressão sobre que lado era correto escrever. Moral da história: todas as maneiras de escrita e expressão devem ser exploradas e valorizadas e nunca dêem ouvidos a parente intrometido ahahaha!
Que ode a diferença, Sanda! Me encantei com a sua generosidade e sabedoria em relação pequenas diferenças que na nossa sociedade são vistas com preconceito, como ser canhoto. O meu filho é canhoto e percebi isso bem cedo quando ele tinha alguns dias de vida e começou a chupar o dedo. Ele usou a mão esquerda! Isso nunca foi um problema até chegar na escola e precisar usar tesoura. Cada reunião de pais na educação infantil que ele estudou (que inclusive era excelente) a avaliação me mostrava que ele não sabia usar a tesoura. Eu argumentava com as professoras que as tesouras são feitas para pessoas destras, mas as professoras me olhavam com olhar de dúvida. O meu filho ainda não sabe usar tesoura. A minha avó também foi canhota e naquela época amarravam a mão esquerda para a criança usar somente a mão direita. Ela acabou escrevendo com a mão direita e fazendo todo o resto com a esquerda.
Não importa com que mão escreve-se, o importante e saber escrever.
Sem dúvida, Edna, o acesso a escrita é direito de todo cidadão e o estado deve se responsabilizar quando, em situações como da pandemia atual, sujeitos de certas classes sociais tem o seu direito negado.